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sábado, 15 de dezembro de 2012

Eu nasci no “Tempo do Medo” (ou o Coronel e o meu Avô).


Um testemunho sobre os "anos de chumbo".


Eu sou a favor do perdão. Acredito que o tempo e o arrependimento são essenciais para isso. Quem nunca perdoa fica eternamente amargurado e com desejo de vingança. Mas, eu sempre me lembro da frase de George Santayana: "aqueles que não podem lembrar o passado, estão condenados a repeti-lo".
Quando leio as notícias na internet, procuro ler os comentários dos leitores. É uma boa medida do impacto social que o fato causou. E eu tenho ficado bem impressionado com o número de pessoas, diante dos vários escândalos de corrupção, envolvendo políticos e empresários, revelados ultimamente, que defendem a volta dos militares ao poder. Também tenho acompanhado a revolta de alguns setores diante do trabalho da Comissão Nacional da Verdade, argumentando que esta só irá investigar os crimes contra os direitos humanos praticados pelos agentes do Estado. Esses, geralmente, argumentam as maravilhas do período entre 1964 e 1985.
Pois eu vou dar o meu testemunho.
Sou um filho da revolução. Nasci pouco tempo depois da Revolução de 1964 (ou golpe militar, como quer que você chame). Meus pais eram bastante jovens e empregados no setor público. Nenhum deles foi perseguido ou tinham grande envolvimento nas causas políticas. Era o que a média da população fazia naquela época. Tentava vencer na vida aproveitando o "Milagre Econômico". Mas, eu me lembro do "medo", um medo difícil de explicar, daqueles que a gente traz a da infância, como o medo de barata ou do escuro debaixo da cama.
Cresci numa cidade com um grande contingente militar, creio que mais de 10% da população. Para mim sempre foi normal ver militares na rua e conviver com os filhos deles que eram meus colegas e que brincavam comigo, como qualquer outra criança. Mesmo assim eu tinha medo dos "milicos". Só mais tarde eu fui entender que esse era um medo que quase todos tinham. Ser amigo da pessoa errada, expressar uma opinião dúbia, ou outra atitude considerada suspeita podia complicar a tua vida.
Estudávamos "Educação Moral e Cívica" na escola e aprendíamos os hinos outras práticas cidadãs. Desfilávamos no dia 7 de setembro (ainda tenho trauma de uma insolação que tive num desses desfiles). Meu pai até hoje diz que éramos mais patriotas naquele tempo. Já a minha noção de patriotismo é um pouco mais vaga e utilitária do que isso. Enquanto isso acontecia coisas estranhas, só havia dois partidos. As eleições eram como um clássico de futebol, time A contra time B. Na minha cidade tinha eleição para prefeitos, na cidade vizinha, assim como em centenas de outras, não. Todos os governadores eram indicados, assim como um terço dos senadores (o que só aconteceu um pouco mais tarde).
E os episódios de medo? Lembro-me dos cochichos, que eram constantes e que as crianças não podiam ouvir (e que eu só entendi mais tarde). Lembro claramente da minha tia entrando na casa da minha avó, chorando e dizendo que o irmão de um ex-namorado dela tinha sido encontrado morto numa sarjeta qualquer da capital. E, quando ela percebeu que eu tinha ouvido disse, muito séria, "tu não fala disso para ninguém!". Lembro-me de evitar passar na rua da delegacia, porque todos os meus tios faziam o mesmo. Também me lembro das aulas particulares de matemática na casa de uma professora que tinha dois filhos, mas que não tinha marido. E, de repente, o marido voltou. Um dia, ele me levou até em casa e lá, conversando com a empregada, contou, na minha frente, que tinha sido preso e que tinham colocado sabão em pó nos seus olhos. Ouvi aquilo apavorado. Mais tarde soube que ele tinha sido preso, por alguns anos, por ser um líder estudantil secundarista. Não sei se foi por causa da prisão, mas ele era uma pessoa assustadora e totalmente desequilibrada. Mas o que eu mais me lembro foi da prisão do meu avô. Na verdade ele nunca foi preso formalmente, apenas foi "detido para averiguações" como a lei da época permitia. Mais tarde fiquei sabendo que isso ocorreu três vezes, todas pelas mesmas razões.

Meu avô nunca foi filiado a partido, nunca pertenceu a organizações políticas, nem nunca foi ativista de qualquer espécie. Só que ele não tinha papas na língua. Não sabia ficar quieto e falou demais em algum lugar público ou diante de quem não devia. As denúncias eram comuns. Não chegavam ao nível dos tempos de Hitler ou Stalin, mas as delações ocorriam. Meu avô voltou para casa e seguiu a vida de representante comercial até se aposentar, com mais de 80 anos, recebendo pouco mais que o mínimo do INSS. Quando morreu tinha apenas a casa que morava, numa zona pobre da mesma cidade.
Para aqueles que argumentam que, pelo menos naquela época não havia tanta corrupção eu digo que o que não havia era a divulgação da mesma. Aqui eu poderia discorrer sobre varias histórias, como a de um primo distante que entregou uma mala de dinheiro para um ministro do período militar. Poderia também detalhar as muitas histórias que vivi no longo período em que trabalhei numa grande empreiteira, já no período "pós-redemocratização". Histórias que tenho absoluta certeza porque vivi, mas que não posso provar. Histórias de corrupção de membros desde o nível técnico até o mais alto escalão do Executivo, tanto municipal, quanto estadual e federal. Histórias que incluem TODOS os partidos que estiveram no poder (em todas essas esferas) entre 1988 e 2002. Depois disso, mudei de ramo e já não tenho mais testemunhos pessoais para dar. Mas acredito que mudou pouco. O que mudou foi a liberdade de falar sobre esses desmandos.
A história que vou contar ocorreu quando eu já era adulto. Estava na faculdade, e uma namorada minha tinha uma prima que era casada com um coronel do exército. Ele era um dos símbolos de sucesso dentro da família de classe média dela. Alguém que tinha feito carreira sem depender de heranças. A primeira vez que fui à casa dele fiquei muito impressionado. A casa não era muito grande, mas era linda e com vários confortos raros na época. A decoração era de um bom-gosto impar. Havia muitas obras de arte e antiguidades espalhadas por todo o canto. Um Mustang e uma moto possante na garagem (numa época em que a importação de carros e motos era proibida e raríssimos eram aqueles que tinha um carro ou uma moto dessas). Fiquei imaginando que o salário de um coronel era muito alto, o que não estava de todo errado, porém aquela padrão de vida não era muito compatível com o dos militares que conheci na minha terra. Não desconfiava de nada mais. Sabia que ele tinha morado em Brasília e no Chile, na década de 70, e que tinha trabalhado no SNI (Serviço Nacional de Informações). Mas nada disso era segredo, ao contrário, era contado sempre com uma ponta de orgulho.

Quando, em 1995, foi publicado o livro "Brasil: Nunca Mais" (Best-seller ainda à venda e com mais de 30 edições), a verdade veio à tona. Os filhos do coronel, já na faculdade, reconheceram, na lista de codinomes dos torturadores, o pai deles. Houve uma crise familiar e história começava a se encaixar e fazer sentido. O fato de ter trabalhado nos órgãos de repressão "facilitaram" um acúmulo de bens que de outra forma não se explicava. Aquele que antes era o herói da família passou a condição de pária. Hoje eu não sei o destino do coronel. Afastei-me completamente daquela família, por diversas razões que nada têm de políticas.
Meu avô morreu lúcido aos 95 anos, bem depois do fim da ditadura. Mesmo assim nunca perguntei para ele os detalhes da detenção dele.
Por isso tudo eu digo: a grande diferença entre hoje e o período militar, não é a economia, o bem-estar social, ou a corrupção, é, sem sombra de dúvidas, a LIBERDADE DE EXPRESSÃO. Se nós nos deixarmos levar pelo canto das sereias daqueles que argumentam por uma ditadura (seja de direita ou esquerda) como panaceia para os males atuais, cairemos novamente num período de medo, SEM O DIREITO DE RECLAMAR.