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terça-feira, 4 de novembro de 2014

Enfrentando os monstros da esquizofrenia

O pior pesadelo de um esquizofrênico é a discriminação que ele sofre



Adoro quando a vida me surpreende com experiências novas e positivas. Eu sou um planejador obsessivo, e como tal qualquer coisa imprevista me deixa em pânico. Pois bem, aquele fim de semana estava planejado completamente diferente do que ocorreu. De repente eu me encontrava na cidade de São Paulo, onde eu imaginava, no máximo, passar um sábado letárgico. Pouco tempo depois estava eu no Anfiteatro do Instituto de Psiquiatria da USP. Eu, um leigo total, no meio de um público formado majoritariamente por psiquiatras somados a outros profissionais da área da saúde. Todos interessados em se atualizar e debater sobre esquizofrenia.

Confesso que já li algumas reportagens e artigos sobre o assunto, mas todos em publicações leigas. Embora não fosse um ignorante no assunto, tinha apenas uma pequena fração do conhecimento do restante do público. Então estava apreensivo para não chamar a atenção (e não passar vergonha). Ainda assim fascinado com a oportunidade de aprender. Logo o primeiro dos oito palestrantes citou uma frase de impacto que, como sempre, não lembro exatamente, mas era algo como: “a esquizofrenia é o principal problema de saúde pública do mundo, maior até que a AIDS”. De olhos fitos, a partir dali estava eu mergulhado num universo de palavras distantes como psicoses e farmacologia, ou desconhecidas como como comorbidades e discinesia.

Depois de um dia inteiro em ótima companhia e aprendendo muito sobre um assunto tão denso eu já estava convencido que aquele tinha sido um dos dias mais interessantes da minha vida. Não tenho, nem de longe, a pretensão de descrever a esquizofrenia, até porque existem ótimos sites sobre o assunto. Só deixo claro o que me pareceu: é uma doença incurável (embora possa ficar assintomático por muitos e muitos anos), muito debilitante, com um impacto devastador sobre as famílias dos portadores, em boa medida tratável (embora as medicações possam ter efeitos colaterais igualmente terríveis) e que diminui a qualidade e a expectativa de vida em decorrência de efeitos secundários da doença.

Nesse momento você pode estar pensando que eu devo ser algum sádico, para dizer que o dia foi dos mais interessantes. Na verdade, a existência da doença é um fato, negar ou ficar ignorante sobre ela não melhora em nada. E é justamente sobre esse ponto que o dia se tornou redentor para mim. Já no final da tarde, com cerca da metade do público tendo se evadido, ocorreram as duas palestras de maior impacto. Primeiro um pesquisador que mostrou fatos e dados que comprovam o alto índice de estigmatização que sofrem os esquizofrênicos. E este índice é assustadoramente alto dentre os profissionais de saúde. Essa revelação causou um visível desconforto no público presente. A última das palestras foi a única que não foi dada por psiquiatra, psicólogo ou terapeuta ocupacional, foi apresentada por um esquizofrênico.

Eu tinha uma imagem muito simplificada e preconceituosa de um esquizofrênico. Lembro de quando criança, na casa do meu avô, ver vários “loucos de rua” afluírem até lá em busca rotineira de ajuda. Era comum essa presença devido às crenças religiosas e filosóficas dele. Naquela época, cada vez que um deles aparecia, eu fugia para dentro de casa e ficava bem perto da minha avó. Eu tinha medo. Já adulto, eu chefiava uma equipe de cerca de 20 pessoas quando um engenheiro da minha equipe (estávamos só eu e ele na sala) teve uma crise psicótica (na época não tinha entendido que era isso). Tentei ajudar, mas não tinha a menor ideia de como agir. Na verdade fiquei muito preocupado, já que ele tinha que viajar muito e realizar atividades, durante as quais, uma crise daquelas causaria risco à própria vida dele. Anos depois encontrei ele numa viagem, ele estava com a família e deu a entender que não estava mais trabalhando. Fiquei com muita pena.

O episódio mais recente, ocorreu há cerca de 5 anos. Trabalho numa grande empresa e um certo dia chegou um colega do setor administrativo apresentando um novo empregado. O rapaz pareceu muito tímido. Alguns dias depois ele se apresentou para o trabalho e, imediatamente, o meu gerente pediu informações sobre ele para o setor de recrutamento. O rapaz tinha um comportamento muito estranho e desconectado. O trabalho dele exigia atenção e capacidade de realizar algumas tarefas com o uso de planilhas eletrônicas e power point. No início até tentamos, mas depois era difícil até “arrancar” um cumprimento dele. Ele simplesmente não estava mais “conectado”. Uma das últimas tentativas foi pedir para ele para organizar em ordem numérica simples um arquivo de pastas suspensas. Uma tarefa que uma criança de 10 anos faria com facilidade, mas que depois de 3 horas ele não conseguiu ao menos iniciar. Assim, terminados os três meses do período de experiência ele foi dispensado. Alguns meses depois ele, apoiado pela família, entrou com uma ação de reintegração ao trabalho alegando que ele era esquizofrênico e estaria em surto psicótico naquele período. Não conseguiu nada.

Voltando ao nosso palestrante, ele se apresentou dizendo que era presidente da ABRE (Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Pessoas com Esquizofrenia) e ele mesmo um esquizofrênico. Durante meia hora ele contou a sua história e disse que o maior problema da vida dele não é a esquizofrenia, mas sim o estigma da doença. E mais, o mais difícil foi reconhecer o auto estigma. Ele disse que se reconhecer um doente crônico, que precisava tomar medicação para toda a vida foi a maior de todas as dificuldades. Ao final da palestra, com um público com respiração silenciosa pelo impacto, as palmas foram as mais calorosas do dia.

Logo em seguida veio o debate. A mediadora falou: alguma pergunta? Silêncio total. Pela primeira vez não apareceram várias mãos questionadoras. Diante do quase constrangimento os outros palestrantes tomaram o microfone e começaram a comentar. O primeiro deles interpretou que o silêncio era decorrente do impacto causado pelas duas últimas palestras. Eu acho que ele tinha razão. Após isso, uma que outra pergunta surgiu. Quando o tempo já estava quase terminando eu tomei coragem e levantei a minha mão. Foi até estranho quando a mediadora me deu a palavra, lembro que olhei para traz, incrédulo com a oportunidade de falar.

O que eu falei foi mais ou menos assim (talvez gaguejando mais):

Eu não sou da área da saúde, só estou aqui como acompanhante. O que eu quero falar não é uma pergunta, mas dar um testemunho. Eu, há cerca de 15 anos, fui diagnosticado com depressão. Tive algumas crises e, depois de muita insistência, comecei a tomar antidepressivos. A minha qualidade de vida melhorou muito depois da medicação. Só que o meu auto estigma (embora eu saiba que o estigma do depressivo é muito muito menor do de um esquizofrênico) me fez querer parar de tomar a medicação. Com a concordância do terapeuta eu parei. Alguns anos depois tudo voltou com enorme força. Hoje eu voltei tomar a medicação e cheguei à conclusão importante de que admitir o fato de ser depressivo é o primeiro passo. Assim, procuro deixar claro para as pessoas que têm maior convivência comigo (como família e colegas de trabalho) que eu tomo antidepressivos. Eu encaro a depressão como diabetes, ou outra doença crônica qualquer. Se for tratado dá para levar uma vida normal. Eu tenho um blog no qual eu já falei sobre a minha depressão e recebi retorno de algumas pessoas comentando que eles se identificaram muito com o que eu escrevi.

Quando eu terminei de falar eu senti um enorme alívio. Eu tinha matado o dragão daquele dia e estava triunfante com a minha lança na mão. A chave de ouro veio quando a minha donzela me deu um beijo elogiando a minha coragem em falar disso publicamente.

Aquele foi um dia em que eu fiquei feliz por ser quem e o que eu sou.



REFERÊNCIAS: